Frei Raniero Cantalamessa: Renovação Carismática, Corrente de Graça para toda a Igreja


De 6 a 8 de junho de 2019 realizou-se no Vaticano a Conferência Internacional CHARIS, reunindo lideranças da Renovação Carismática Católica. São mais de 550 os líderes provenientes de diversas partes do mundo, que compartilham e rezam juntos,  na escuta do Espírito Santo. Um dos palestrantes, foi o pregador da Casa Pontifícia, padre Raniero Cantalamessa ofm Cap, assistente eclesiástico do Charis.
Confira a íntegra de seu pronunciamento na manhã deste sábado, na Sala Paulo VI, intitulado “a Renovação Carismática, uma Corrente de Graça para toda a Igreja (a tradução é do Fr. Ricardo Farias, ofmcap):

"Parto da convicção, compartilhada por todos nós e frequentemente repetida pelo Papa Francisco, de que a Renovação Carismática Católica (RCC) é “uma corrente de graça para toda a Igreja”. Se a RCC é uma corrente de graça para toda a Igreja, temos o dever de explicar a nós mesmos e à Igreja em que consiste esta corrente de graça e porque ela é destinada e necessária a toda a Igreja. Explicar, brevemente, o que somos e o que oferecemos – melhor, o que Deus oferece – à Igreja com esta corrente de graça.

Até o momento não estivemos em condições – nem podíamos estar – de dizer com clareza o que é a Renovação Carismática. É necessário, portanto, experimentar uma forma de vida antes de poder defini-la. Assim aconteceu sempre no passado, por ocasião do aparecimento de novas formas de vida cristã. Pobres daqueles movimentos e ordens religiosas que nascem com tantas regras e constituições estabelecidas minuciosamente desde o início, para depois colocá-las em prática como um protocolo a ser seguido. É a vida que, progredindo, adquire uma fisionomia e se dá uma regra, como o rio que, avançando, cava seu próprio leito.

Devemos reconhecer que, até o momento, temos dado à Igreja ideias e representações da Renovação Carismática diferentes e, às vezes, contraditórias. Bastaria fazer uma breve sondagem entre as pessoas que vivem fora dela para nos darmos conta da confusão que reina acerca da identidade da Renovação Carismática.

Para alguns, ela é um movimento de “entusiastas”, não diverso dos movimentos “entusiastas e iluminados” do passado, o povo do Aleluia, das mãos erguidas, que rezam e cantam em uma linguagem incompreensível, um fenômeno, no fim das contas, emocional e superficial. Posso afirmá-lo, com conhecimento de causa, pois eu também fui, por certo tempo, daqueles que pensavam assim. Para outros, ela é identificada com pessoas que fazem orações de cura e realizam exorcismos; para outros, ainda, trata-se de uma “infiltração” protestante e pentecostal na Igreja católica. Na melhor das hipóteses, a Renovação Carismática é vista como uma realidade à qual se pode confiar tantas coisas na paróquia, mas com a qual é melhor não se envolver. Como alguém disse, ama-se os frutos da Renovação, mas não a árvore.

Após 50 anos de vida e de experiência, e por ocasião da inauguração do novo organismo de serviço, a CHARIS, talvez tenha chegado o momento de tentar fazer uma releitura desta realidade e dar-lhe uma definição, ainda que não definitiva, estando o seu caminho por nada concluído.
Acredito que a essência desta corrente de graça esteja providencialmente contida em seu nome “Renovação Carismática”, desde que se compreenda o verdadeiro significado destas duas palavras. É o que me proponho a fazer, dedicando a primeira parte da minha exposição ao substantivo “Renovação” e a segunda parte ao adjetivo “carismática”.

PRIMEIRA PARTE: “RENOVAÇÃO”

É necessário fazer uma premissa de caráter geral para entender a relação que existe entre o substantivo “renovação” e o adjetivo “carismático”, e o que cada um deles representa.
Na Bíblia, emergem claramente dois modos de operar do Espírito de Deus. Há, primeiramente, o modo que podemos chamar de carismático. Este consiste no fato de que o Espírito de Deus vem sobre algumas pessoas, em circunstâncias particulares, e lhes confere dons e capacidades além do alcance humano para desempenhar a tarefa que Deus espera delas. Fala-se do Espírito de Deus que vem sobre algumas pessoas e lhes confere dons artísticos para a construção do templo.[1] A característica deste modo de operar do Espírito de Deus é que ele é dado a uma pessoa, mas não para a própria pessoa, para torná-la mais agradável a Deus, mas, antes, pelo bem da comunidade, para o serviço.

Apenas num segundo momento, praticamente após o exílio, inicia-se a falar de um modo diverso de operar do Espírito de Deus, um modo que, em seguida, chamar-se-á ação santificadora do Espírito (2Ts 2,13). Pela primeira vez, no Salmo 51, o Espírito é definido “santo”: “não retireis de mim o vosso Santo Espírito”. O testemunho mais claro é a profecia de Ezequiel 36,26-27:

Eu vos darei um coração novo e porei um espírito novo dentro de vós. Arrancarei do vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne; porei o meu espírito dentro de vós e farei com que sigais a minha lei e cuideis de observar os meus mandamentos.

A novidade deste modo de agir do Espírito é que ele vem sobre uma pessoa e permanece nela, e a transforma desde dentro, dando-lhe um coração novo e uma capacidade nova de observar a lei. Em seguida, a teologia chamará o primeiro modo de agir do Espírito “gratia gratis data”, dom gratuito, e o segundo, “gratia gratum faciens”, graça que torna agradável a Deus.

Passando do Antigo ao Novo Testamento, este dúplice modo de agir do Espírito se torna ainda mais claro. Basta ler primeiramente o capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios, onde se fala de todo tipo de carismas, e depois passar ao capítulo sucessivo, o 13, onde se fala de um dom único, igual e necessário para todos, que é a caridade. Esta caridade é “o amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5,5), o amor – assim o define Santo Tomás de Aquino – “com o qual Deus nos ama e com o qual nos torna capazes de amá-lo e os irmãos”[2].

A relação entre a obra santificadora do Espírito e a sua ação carismática é vista por Paulo como a relação que existe entre o ser e o agir e como a relação que existe entre a unidade e a diversidade na Igreja. A ação santificadora se refere ao ser do cristão, os carismas se referem ao agir, são para o serviço (1Cor 12,7; 1Pd 4,10); a primeira coisa funda a unidade da Igreja, a segunda, a variedade das suas funções. Sobre isso, basta ler Efésios 4, 4-13. Neste, o Apóstolo expõe primeiramente o que funda o ser do cristão e a unidade de todos os fiéis: um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, uma só fé, para passar a falar da “graça dada a cada um conforme a medida do dom de Cristo”: apóstolos, evangelistas, mestres...

O Apóstolo não se limita a pôr em evidência os dois modos de operar do Espírito, mas afirma também a prioridade absoluta da ação santificadora sobre a ação carismática. O agir depende do ser (agere sequitur esse), não o contrário. Paulo aborda brevemente a maioria dos carismas – falar todas as línguas, possuir o dom da profecia, conhecer todos os mistérios, distribuir tudo aos pobres – e conclui que, sem a caridade, não serviriam a nada a quem os exerce, ainda que possam servir a quem os recebe.

Tudo o que eu disse sobre a ação renovadora e santificadora do Espírito está contido no substantivo “Renovação”. Por que justamente este termo? Por que chamamos “Seminário de vida nova no Espírito” o instrumento com o qual nos preparávamos para receber o batismo no Espírito? A ideia de novidade acompanha do início ao fim a revelação da ação santificadora do Espírito. Já em Ezequiel, fala-se de um “Espírito novo”. João fala de um “nascer de novo da água e do Espírito (Jo 3,5). Mas é sobretudo São Paulo que vê na “novidade” o que caracteriza toda a “nova aliança” (2Cor 3,6). Ele define o fiel como “homem novo” (Ef 2,15; 4,24) e o batismo como “um banho de renovação no Espírito Santo” (Tt 3,5).

O que deve ser imediatamente posto às claras é que esta vida nova é a vida trazida por Cristo. É ele que, ressurgindo da morte, deu-nos a possibilidade, graças ao nosso batismo, de “levarmos uma vida nova” (Rm 6,4). Ela é, portanto, dom, antes que um dever, um “fato”, antes que um “deve ser feito”. Sobre este ponto, faz-se necessária uma revolução copernicana na mentalidade comum do fiel católico (não na doutrina oficial da Igreja!), e é esta uma das contribuições mais importantes que a Renovação Carismática pode dar – e, em parte, já tem dado – à vida da Igreja. Por séculos, insistiu-se tanto na moral, no dever, no deve ser feito para conquistar a vida eterna, a ponto de se inverter a relação e se pôr o dever antes do dom, fazendo da graça o efeito, ao invés da causa, das nossas boas obras.

A Renovação Carismática, concretamente o batismo no Espírito, operou dentro de mim aquela revolução copernicana de que falei, e, por isso, estou intimamente convencido de que ela pode operá-la em toda a Igreja. E é a revolução da qual depende a possibilidade de reevangelizar o mundo pós-cristão. A fé desabrocha na presença do kerygma, não na presença da didaché, ou seja, não na presença da teologia, da apologética, da moral. Estas coisas são necessárias para “formar” a fé e levá-la à perfeição da caridade, mas não estão em condições de gerá-la. O cristianismo, diferentemente de qualquer outra religião, não começa dizendo aos homens o que devem fazer para salvarem-se; começa dizendo o que Deus fez, em Cristo Jesus, para salvá-los. É a religião da graça.

Em que consiste a vida nova no Espírito

Mas agora chegou o momento de descer mais ao concreto, e ver em que consiste e como se manifesta a vida nova no Espírito, e, portanto, em que consiste a verdadeira “Renovação”. Apoiamo-nos em São Paulo e, mais precisamente, na sua Carta aos Romanos, pois é aí que, quase programaticamente, são expostos os seus elementos constitutivos.

Uma vida vivida na lei do Espírito

A vida nova é, primeiramente, uma vida vivida “na lei do Espírito”.

“Não há mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus. Pois a lei do Espírito que dá a vida em Jesus Cristo te libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,1-2).

Não se entende o que significa a expressão “lei do Espírito”, se não a partir do evento de Pentecostes. No Antigo Testamento, existiam duas interpretações fundamentais da festa de Pentecostes. No início, Pentecostes era a festa da colheita (cf. Nm 28,26ss), quando se oferecia a Deus as primícias do trigo (cf. Ex 23,16; Dt 16,9). Mas, sucessivamente, e certamente no tempo de Jesus, a festa se enriquecera de um novo significado. Era a festa que recordava a outorga da lei no Monte Sinai e a aliança estabelecida entre Deus e o seu povo; a festa, enfim, que comemorava os acontecimentos descritos em Ex 19-20. “Este dia da festa das semanas – reza um texto da atual liturgia hebraica de Pentecostes (Shavuot) – é o tempo do dom da nossa Torá”.

O que vem a nos dizer, sobre nosso Pentecostes, esta aproximação? O que significa, em outras palavras, o fato de que o Espírito Santo desce sobre a Igreja justamente no dia em que Israel recordava o dom da lei e da aliança? Já Santo Agostinho se fazia esta pergunta e dava a seguinte resposta. Cinquenta dias após a imolação do cordeiro no Egito, no monte Sinai, o dedo de Deus escreveu a lei de Deus em tábuas de pedra, e eis que, cinquenta dias depois da imolação do verdadeiro Cordeiro de Deus, que é Cristo, novamente o dedo de Deus, o Espírito Santo, escreveu a lei; mas desta vez não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne dos corações.

Esta interpretação se fundamenta, ela mesma, na afirmação de Paulo que define a comunidade da nova aliança como uma “carta de Cristo, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, gravada não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, dos corações” (cf. 2Cor 3,3).

De um lance, iluminam-se as profecias de Jeremias e de Ezequiel sobre a nova aliança: “Esta será a aliança que concluirei com a casa de Israel, depois desses dias, diz o Senhor: imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31,33). Não mais em tábuas de pedra, mas nos corações; não mais uma lei exterior, mas uma lei interior.

Como age, concretamente, esta nova lei, que é o Espírito, e em que sentido pode-se chamar de “lei”? Age através do amor! A nova lei é o que Jesus chama de “mandamento novo” (Jo 13,34). O Espírito Santo escreveu a nova lei em nossos corações, infundindo neles o amor: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Este amor, explicou-nos Santo Tomás, é o amor com o qual Deus nos ama e com o qual, contemporaneamente, faz com que nós possamos amá-lo em resposta e amar o próximo. É uma capacidade nova de amar.

Há dois modos com os quais o homem pode ser induzido a fazer, ou a não fazer, uma certa coisa: ou por coerção ou por atração; a lei exterior o induz do primeiro modo, por coerção, com a ameaça do castigo; o amor o induz do segundo modo, por atração. Cada um, de fato, é atraído por aquilo que ama, sem que sofra qualquer coerção do exterior. A vida cristã deve ser vivida por atração, não por coerção, por amor, não por temor.

Uma vida de filhos de Deus

Em segundo lugar a vida nova no Espírito é uma vida de filhos de Deus. Escreve ainda o Apóstolo:
“Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. De fato, vós não recebestes um espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, no qual todos nós clamamos: Abá – ó Pai! O próprio Espírito se une ao nosso espírito para nos atestar que somos filhos de Deus” (Rm 8,14-16).

Esta é uma ideia central da mensagem de Jesus e de todo o Novo Testamento. Graças ao batismo que nos enxertou em Cristo, nós nos tornamos filhos no Filho. O que, portanto, pode trazer de novo a Renovação Carismática neste campo? Algo importantíssimo, isto é, a descoberta e a tomada de consciência existencial da paternidade de Deus, o que tem feito cair em lágrimas mais de uma pessoa no momento do batismo no Espírito. De direito, nós somos filhos pelo batismo, mas, de fato, nós nos tornamos graças a uma ação do Espírito Santo que continua na vida.

Uma vida no senhorio de Cristo

Enfim, a vida nova é uma vida no Senhorio de Cristo. Escreve o Apóstolo:
“Se, com tua boca, confessares Jesus como Senhor e, no teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo” (Rm 10,9).

E, de novo, logo depois, na mesma Carta:

Ninguém dentre nós vive para si mesmo ou morre para si mesmo. Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos; se morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto, vivos ou mortos, pertencemos ao Senhor. Cristo morreu e ressuscitou exatamente para isto, para ser o Senhor dos mortos e dos vivos. (Rm 14,7-9).

Este conhecimento especial de Jesus é obra do Espírito Santo: “Ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor a não ser no Espírito Santo” (1Cor 12,3). O dom mais evidente que eu recebi na ocasião do meu batismo no Espírito foi a descoberta do Senhorio de Cristo. Até então, eu era um estudioso de cristologia, realizava cursos e escrevia livros sobre as doutrinas cristológicas antigas; o Espírito Santo me converteu da cristologia a Cristo. Que emoção ao escutar, em julho de 1977, no estádio de Kansas City, 40 mil fiéis de várias denominações cristãs cantando: He’s Lord, He’is Lord. He’s risen from the dead and He is Lord. Every knee shall bow, every tongue confess that Jesus Christ is Lord” (“Ele é o Senhor, Ele é o Senhor. Ele ressurgiu dos mortos e Ele é o Senhor. Todo joelho se dobre, toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor”, N. do T.). Para mim, até então observador externo da Renovação, aquele canto tinha ressonâncias cósmicas, apelava ao que está nos céus, na terra e abaixo dela. Por que não repetir, em uma ocasião como esta, aquela experiência e proclamar juntos, no canto, o senhorio de Cristo...? Cantemos em inglês, quem souber…

O que há de especial, na proclamação de Jesus como Senhor, que a faz tão diversa e determinante? É que, com ela, não se faz apenas uma profissão de fé, mas se toma uma decisão pessoal. Quem a pronuncia, decide o sentido da sua vida. É como se dissesse: “Tu és o meu Senhor; eu me submeto a ti, eu te reconheço livremente como o meu salvador, o meu chefe, o meu mestre, aquele que tem todos os direitos sobre mim. Eu te entrego com alegria as rédeas da minha vida”.

Esta redescoberta luminosa de Jesus como Senhor é talvez a mais bela graça que, em nossos tempos, Deus tem concedido à sua Igreja, através da RCC. No início, a proclamação de Jesus como Senhor (Kyrios) foi, para a evangelização, o que a relha é para o arado: aquela espécie de espada que, primeiro, fende o terreno e permite ao arado traçar o sulco. Sobre este ponto, infelizmente, incide uma mudança na passagem do ambiente judaico ao helenístico. No mundo judaico, o título Adonai, Senhor, sozinho, bastava para proclamar a divindade de Cristo. E, de fato, é com ele que, no dia de Pentecostes, Pedro proclama Jesus Cristo ao mundo: “Que todo o povo de Israel reconheça com plena certeza: Deus constituiu Senhor e Cristo a este Jesus que vós crucificastes” (At 2,36).

Na pregação aos pagãos, esse título não era mais suficiente. Tantos, a partir do imperador romano, faziam-se chamar de Senhores. Nota-o com tristeza o Apóstolo: “Existem muitos deuses e senhores, para nós, porém, existe um só Senhor, Jesus Cristo” (cf. 1Cor 8,5-6). Já no século III, o título de Senhor não é mais compreendido em seu significado kerigmático; é considerado o título próprio para quem ainda está no estágio de “servo” e do temor, inferior, portanto, ao título de Mestre, que é próprio para o “discípulo” e o amigo[4]. Continua-se, certamente, a falar de Jesus “Senhor”, mas este se tornou um título como os outros, ou melhor, mais frequentemente, um dos elementos do nome completo de Cristo: “Nosso Senhor Jesus Cristo”. Mas uma coisa é dizer “nosso Senhor Jesus Cristo”, outra, dizer: “Jesus Cristo é o nosso Senhor!” (com o ponto de exclamação).

Onde está, em tudo isso, o salto de qualidade que o Espírito Santo nos proporciona fazer no conhecimento de Cristo? Está no fato de que a proclamação de Jesus Senhor é a porta que dá acesso ao conhecimento do Cristo ressuscitado e vivo! Não mais um Cristo personagem, mas pessoa; não mais um conjunto de teses, de dogmas (e das heresias correspondentes), não mais apenas objeto de culto e de memória, mas realidade viva no Espírito. Entre este Jesus vivo e o dos livros e das doutas discussões sobre ele, corre a mesma diferença que há entre o céu verdadeiro e um céu desenhado em uma folha de papel. Se quisermos que a nova evangelização não permaneça um pio desejo, devemos recolocar a “relha” na frente do arado, o kerygma na frente da parênese.

A experiência comum do senhorio de Cristo é também o que mais impele à unidade dos cristãos, como vemos que ocorre aqui, entre nós. Uma das tarefas prioritárias da CHARIS, segundo as indicações do Santo Padre, é justamente a de promover, com todos os meios, esta unidade entre todos os fiéis em Cristo, no respeito recíproco da própria identidade.

Uma corrente de graça para toda a Igreja

Creio que, neste ponto, esteja claro porque dizemos que a Renovação Carismática é uma corrente de graça para toda a Igreja. Tudo o que a palavra de Deus nos tem revelado sobre a vida nova em Cristo – uma vida vivida segundo a lei do Espírito, uma vida de filhos de Deus e uma vida no Senhorio de Cristo –, tudo isso não é senão a essência da vida e da santidade cristã. É a vida batismal atuada em plenitude, isto é, não só pensada e acreditada, mas vivida e proposta, e não a algumas almas privilegiadas apenas, mas por todo o povo santo de Deus. Para muitos milhões de fiéis, o batismo no Espírito tem sido a porta que os introduziu a esses esplendores da vida cristã.

Uma das máximas queridas ao Papa Francisco é que “a realidade é superior à ideia”[5], e, portanto, que o vivido é superior ao pensado. Creio que a Renovação Carismática pode ser (e, em parte, tem sido) de grande ajuda para fazer passar as grandes verdades da fé do pensado ao vivido, para fazer passar o Espírito Santo dos livros de teologia à experiência dos fiéis.

São João XXIII concebeu o Concílio Vaticano como a ocasião para um “novo Pentecostes” para a Igreja. O Senhor respondeu a esta oração do Papa além de qualquer expectativa. Mas o que significa “um novo Pentecostes”? Ele não pode consistir apenas em um novo florescimento de carismas, de ministérios, de sinais e prodígios, em um sopro de ar fresco no rosto da Igreja. Estas coisas são o reflexo e o sinal de algo mais profundo. Um novo Pentecostes, para ser realmente tal, deve acontecer na profundidade que nos revelou o Apóstolo; deve renovar o coração da Esposa, não apenas o seu vestido.
Para ser, contudo, a corrente de graça que descrevemos, a Renovação Carismático precisa ela mesma se renovar, e a isso quer contribuir a instituição da CHARIS. “Não se pense – escrevia Orígenes, no século III – que basta se renovar uma única vez; é preciso renovar a mesma novidade: ‘Ipsa novitas innovanda est’”[6]. Não há que se surpreender com isso. É o que acontece em todo projeto de Deus no momento em que é colocado nas mãos do homem.

Logo após a minha adesão à Renovação, um dia, em oração, fui tomado por alguns pensamentos. Parecia-me intuir o que o Senhor estava fazendo de novo na Igreja; peguei uma folha de papel e uma caneta e escrevi alguns pensamentos, dos quais eu mesmo me surpreendi, tão pouco, eram fruto da minha reflexão. Encontram-se publicados em meu livro La sobria ebbrezza dello Spirito (“A sóbria embriaguez do Espírito”, N. do T.), mas me permito compartilhar-lhes de novo, pois me parece ser o ponto do qual devemos reiniciar.

“O Pai quer glorificar o seu Filho Jesus Cristo na terra de maneira nova, com uma invenção nova. O Espírito Santo é agente desta glorificação, pois está escrito: ‘Ele me glorificará e receberá do que é meu’. Uma vida cristã inteiramente consagrada a Deus, sem fundador, nem regra, nem congregação novos. Fundador: Jesus! Regra: o Evangelho interpretado pelo Espírito Santo! Congregação: a Igreja!

Não se preocupar com o amanhã, não querer fazer coisas que permaneçam, não querer erguer organismos reconhecidos que se perpetuem com sucessores... Jesus é um Fundador que nunca morre, por isso, não precisa de sucessores. É preciso deixá-lo sempre fazer coisas novas, também amanhã. O Espírito Santo existirá também amanhã na Igreja!”

SEGUNDA PARTE: “CARISMÁTICO”

Agora chegou o momento de passar à segunda parte do meu discurso, que será bem mais breve: o que acrescenta o adjetivo “Carismático” ao nome “Renovação”. Primeiramente, é importante dizer que “carismático” deve permanecer um adjetivo e jamais se tornar um substantivo. Em outras palavras, deve-se evitar absolutamente, de nossa parte, o uso do termo “os carismáticos”, para indicar as pessoas que fizeram a experiência da Renovação. No caso, use-se a expressão “cristãos renovados”, mas não carismáticos. O uso deste nome suscita justamente ressentimento, pois cria discriminação entre os membros do corpo de Cristo, quase como se alguns fossem dotados de carismas e outros não.
Não quero fazer aqui um ensinamento sobre carismas, dos quais há tantas ocasiões para falar. A minha intenção é mostrar como, também enquanto realidade carismática, a Renovação é uma corrente de graça destinada a toda a Igreja. Para ilustrar esta afirmação, é necessário dar uma rápida olhada na história dos carismas na Igreja.

A redescoberta dos carismas no Vaticano II

O que tinha acontecido, na realidade, aos carismas após sua tumultuosa aparição nos inícios da Igreja? Os carismas não tinham desaparecido tanto da vida da Igreja, quanto mais da sua teologia. Se revisitarmos a história da Igreja, tendo em mente as várias listas de carismas do Novo Testamento, devemos concluir que, com exceção talvez do “falar em línguas” e da “interpretação das línguas”, nenhum dos carismas foi completamente perdido.

Então, onde está a novidade que nos permite falar de um despertar dos carismas em nossa época? O que estava ausente antes? Os carismas, do seu âmbito próprio da utilidade comum e da “organização da Igreja”, tinham sido progressivamente confinados no âmbito privado e pessoal. Não mais entravam na constituição da Igreja.

Na vida da comunidade cristã primitiva, os carismas não eram fatos privados, eram o que, juntamente com a autoridade apostólica, delineavam a fisionomia da comunidade. Apóstolos e profetas eram as duas forças que, juntas, guiavam a comunidade. Bem cedo, o equilíbrio entre as duas instâncias – a do ofício e a do carisma – rompe-se em vantagem do ofício. Um elemento determinante foi o surgimento das primeiras falsas doutrinas, especialmente as gnósticas. Foi este fato que fez pender sempre mais a agulha da balança para os detentores do ofício, os pastores. Um outro fato foi a crise do movimento profético difundido por Montano na Ásia Menor no século II, que serviu para desacreditar ainda mais um certo tipo de entusiasmo carismático coletivo.

Deste fato fundamental derivam todas as consequências negativas acerca dos carismas. Os carismas são relegados às margens da vida da Igreja. Desaparecem sobretudo aqueles carismas que tinham como terreno de exercício o culto e a vida da comunidade: o falar inspirado e glossolalia, os chamados carismas pentecostais. A profecia vem a se reduzir ao carisma do magistério de interpretar autenticamente e infalivelmente a revelação (esta era a definição da profecia nos tratados de eclesiologia que se estudavam a meu tempo).

Busca-se justificar também teologicamente esta situação. Segundo uma teoria frequentemente repetida por São João Crisóstomo e depois, até a vigília do Vaticano II, certos carismas seriam reservados à Igreja em seu “estado nascente”, mas depois teriam “cessado”, como não mais necessários à economia geral da Igreja.

Outra consequência inevitável é a clericalização dos carismas. Ligados à santidade pessoal, eles acabam por ser associados quase sempre aos representantes habituais desta santidade: pastores, monges, religiosos. Do âmbito da eclesiologia, os carismas passam ao da hagiografia, isto é, ao estudo da vida dos santos. O lugar dos carismas é tomado pelos “Sete dons do Espírito” que, no início (em Isaías 11) e até a Escolástica, não eram outra coisa senão uma categoria particular de carismas, aqueles prometidos ao rei messiânico e, em seguida, àqueles que têm a tarefa do governo pastoral.
Esta é a situação a que o Concílio Vaticano II quis remediar. Em um dos documentos mais importantes do Vaticano II, lemos o conhecido texto:

“O Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas ‘distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz’ (1Cor 12,11), distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja, segundo aquelas palavras: ‘a cada qual se concede a manifestação do Espírito em ordem ao bem comum’ (1Cor 12,7). Estes carismas, quer sejam os mais elevados, quer também os mais simples e comuns, devem ser recebidos com ação de graças e consolação”.

Este texto não é uma nota marginal dentro da eclesiologia do Vaticano II; antes, é sua coroação. É o modo mais claro e mais explícito de afirmar que, ao lado da dimensão hierárquica e institucional, a Igreja tem uma dimensão pneumática e que a primeira está em função e a serviço da segunda. Não é o Espírito que está a serviço da instituição, mas a instituição a serviço do Espírito.

A essa altura, concluído o Concílio e reunidos em um volume os seus decretos, o perigo de marginalizar os carismas se reapresentava sob outra forma, não menos perigosa: a de permanecer um belo documento que os estudiosos não se cansam de estudar e os pregadores de citar. O Senhor preveniu, ele mesmo, sobre este perigo, dando a ver com os próprios olhos, àquele que quisera fortemente o texto sobre os carismas, que eles tinham voltado não apenas à teologia, mas também à vida do povo de Deus. Quando, pela primeira vez, em 1973, o Cardeal Leo Suenens, ouviu falar da Renovação Carismática Católica, surgida nos Estados unidos, estava escrevendo um livro intitulado “O Espírito Santo, nossa esperança”, e eis o que ele conta em suas memórias:

“Parei de escrever o livro. Pensei que fosse uma questão da mais elementar coerência prestar atenção na ação do Espírito Santo, porquanto ela pudesse se manifestar de modo surpreendente. Eu estava particularmente interessado na notícia do despertar dos carismas, a partir do momento em que o Concílio tinha invocado um tal despertar”.

E eis o que escreveu após ter constatado com os próprios olhos o que estava acontecendo na Igreja:
“Improvisamente, São Paulo e os Atos dos Apóstolos pareciam se tornar vivos e fazer parte do presente; o que era autenticamente verdadeiro no passado, parecer acontecer de novo sob os nossos olhos. É uma descoberta da verdadeira ação do Espírito Santo que está sempre em ação, como o próprio Jesus prometeu. Ele mantém a sua palavra. É de novo uma explosão do Espírito de Pentecostes, uma alegria que tinha se tornado desconhecida para a Igreja”.

Agora está claro, acredito, porque digo que também como realidade carismática, a Renovação é uma corrente de graça destinada e necessária a toda a Igreja. É a própria Igreja que, no Concílio, definiu-o. Resta apenas passar da definição à atuação, dos documentos à vida. E este é o serviço que a CHARIS, em total continuidade com a RCC do passado, é chamada a prestar à Igreja.

Não se trata somente de fidelidade ao Concílio, mas de fidelidade à própria missão da Igreja. Os carismas, lê-se no texto conciliar, são “proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja” (talvez teria sido mais justo escrever “necessários”, no lugar de “proveitosos”). A fé, hoje, como no tempo de Paulo e dos apóstolos, não se transmite “com discursos persuasivos de sabedoria, mas na manifestação do Espírito e do poder” (cf. 1Cor 2,4-5; 1Ts 1,5). Se, há um tempo, em um mundo que se tornou, pelo menos oficialmente, “cristão”, podia-se pensar que não havia mais necessidade de carismas, de sinais e prodígios, como no início da Igreja, hoje não mais. Nós voltamos a estar mais próximos ao tempo dos apóstolos do que ao de São João Crisóstomo. Eles deviam anunciar o Evangelho a um mundo pré-cristão; nós, pelo menos no ocidente, a um mundo pós-cristão.

Eu disse até aqui que a RCC é uma corrente de graça necessária a toda a Igreja Católica. Devo acrescentar que ela o é duplamente para algumas igrejas nacionais que assistem há tempos a uma dolorosa hemorragia dos próprios fiéis rumo a outras realidades carismáticas. É bem conhecido que um dos motivos mais comuns de tal êxodo é a necessidade de uma expressão da fé que mais responda à própria cultura: com mais espaço dado à espontaneidade, à alegria e ao corpo; uma vida de fé em que a religiosidade popular seja um valor acrescentado e não um substitutivo do senhorio de Cristo.
Fazem-se análises pastorais e sociológicas do fenômeno[10] e se especulam remédios, mas se tem dificuldade em dar-se conta de que o Espírito Santo já proveu, de maneira grandiosa, a esta necessidade. Não se pode mais continuar a ver a RCC como parte do problema do êxodo dos católicos, ao invés de solução do problema. Para que este remédio seja realmente eficaz, não basta, contudo, que os pastores aprovem e encorajem a RCC, permanecendo acuradamente fora dela. É preciso acolher na própria vida a corrente de graça. A isso nos impulsiona o exemplo do Pastor da Igreja universal, também com a instituição da CHARIS.

Não pretendo prolongar-me além sobre o tema carismas e evangelização. Dele, falou-nos o nosso caro coordenador Jean-Luc e nos falará daqui a pouco Mary Healy, que, sobre este tema, além de uma excelente formação teológica, possui também uma notável experiência amadurecida na área. Concluo com uma reflexão sobre o exercício dos carismas.

  *  *  *
Como assistente eclesiástico, procurei dar, com este ensinamento, a minha contribuição para uma correta visão da RCC na história e no presente da Igreja. Serão, porém, o moderador e os membros do comitê internacional a ter que carregar o peso maior deste novo início. A todos eles, exprimo a minha fraterna amizade e a minha incondicional colaboração, até quando o Senhor me der a força para fazê-lo. A Carta aos Hebreus recomendava aos primeiros cristãos: “Lembrai-vos de vossos dirigentes, que vos pregaram a palavra de Deus” (Hb 13,7). Nós devemos fazer o mesmo, recordando com afeto e gratidão aqueles que, por primeiro, viveram e promoveram o novo Pentecostes: Patti Mansfield, Ralph Martin, Steve Clark, Kevin e Dorothy Ranagan e todos os outros que, em seguida, serviram à RCC no ICCRS, na Fraternidade Católica e em outros órgãos de serviço.

Concluo com uma palavra profética que proclamei na primeira vez que me encontrei a pregar na presença de São João Paulo II. É a palavra que o profeta Ageu dirigiu aos chefes e ao povo de Israel no momento em que se preparavam para reconstruir o templo:

“Mas agora, toma coragem, Zorobabel, diz o Senhor, coragem, Josué, filho de Josedec, sumo sacerdote; coragem, povo todo desta terra, diz o Senhor dos exércitos; ponde mãos à obra, pois eu estou convosco” (Ag 2,4).

Coragem, Jean-Luc e membros do comitê; coragem, povo todo da RCC; coragem irmãos e irmãs de outras Igrejas cristãs que estão conosco: “ponde mãos à obra, pois eu estou convosco, diz o Senhor!”

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

VISÃO ESPIRITUAL

Na véspera do centenário de Fátima, Pe. Amorth avisa: Nossa Senhora pediu a consagração da Rússia, mas não foi feita.